Sutileza
Recentemente uma paciente marcou consulta comigo porque disse que sabia que eu não a ''xingaria''...
Fiquei até admirada por ela ter cogitado essa possibilidade. Acabei não questionando se ela já tinha vivido alguma experiência que a fez pensar nisso, mas é provável que sim, infelizmente. Também não faz muito tempo que outra paciente me contou que, em certo momento da consulta com profissional especialista, o indagou se determinada opção era mesmo a melhor terapia indicada para ela. A esse questionamento, ele impôs a seguinte resposta : ''Quem é o médico aqui, eu ou você ?'' A figura de sabedoria associada ao médico (e incorporada por ele) pode levá-lo a ter uma atitude autoritária e desrespeitosa com o paciente. Relatos semelhantes, lamentavelmente, não são infrequentes no consultório.
Este tipo de reação é uma maneira rápida de minar com qualquer conexão entre médico e paciente. Para que fique claro, minha ideia não é julgar o colega individualmente, até porque só ouvi partes de uma história e não sei exatamente o que estava acontecendo naquele momento, naquele consultório, que levou o médico a reagir dessa maneira. Independentemente disso, a intenção é muito mais voltada à reflexão para que possamos melhorar nossa conduta frente aos pacientes, dentro da realidade dos dias atuais.
O médico, lidando com um paciente em consulta ambulatorial, é sim o mais experiente no que concerne à parte técnica dentro daquela relação. Com seu conhecimento, deve direcionar a conduta para o que julga ser o melhor tratamento para cada paciente. Mas direcionar não significa impor. Impor uma decisão implica em não escutar as preferências, a realidade de vida e até mesmo o conhecimento prévio do paciente. Sabemos que pesquisas rápidas na internet não equivalem a anos de estudo e treinamento, mas não podemos negar o fato de que hoje em dia o conhecimento é muito mais disponível. Mesmo que a informação buscada esteja equivocada (dentro da nossa visão), é nosso papel explicar os motivos pelos quais não concordamos com tal fato e as razões pelas quais tomamos determinada decisão.
Alguns pacientes nem sempre demandam justificativas além das que já fornecemos (ou deveríamos fornecer) naturalmente para nossa conduta, e seria bem mais fácil se assim fosse em todas as consultas. Mas também se perderia um pouco da graça que é negociar com o paciente, conhecendo melhor a pessoa que está na nossa frente e aprendendo com ela. Além disso, perderíamos a chance de rever nosso próprio conhecimento e posicionamento sobre certo assunto, saindo do modo automático. Algumas (ou muitas) vezes o paciente não se convence daquilo que julgamos ser o melhor pra ele e decide, por diversos motivos, seguir um caminho diferente do que orientamos. Nesse momento, no lugar de questionar "Quem é o médico aqui ?'', é muito mais coerente reconhecermos com humildade as limitações ligadas a este processo.
Um ☕ ou um 💛 ? |
Na minha visão, as limitações que levam a ruídos na comunicação entre médicos e pacientes podem estar ligadas ao próprio médico, ao paciente, à relação que se estabelece entre os dois últimos e ao formato da consulta (tempo e ambiente). No ponto que se refere ao médico, aspecto sobre o qual temos mais controle, as limitações estão muito relacionadas à forma como comunicamos ao paciente nosso raciocínio. No âmbito do atendimento ambulatorial, onde a maioria das condutas que tomamos terão um benefício a longo prazo, menos palpável, é fundamental que coloquemos em perspectiva os benefícios e os riscos, sempre levando em consideração o contexto e as preferências do paciente.
Explicar a doença e seu tratamento requer uma boa habilidade de expressão, buscando atingir o máximo de entendimento do paciente; isso demanda ajustes de rota para menos ou mais complexidade, dependendo do que o paciente e seus familiares estão dispostos e aptos a ouvir. Uma maneira de assegurar que o paciente compreendeu a mensagem é pedir para que ele repita, com suas próprias palavras, o que entendeu até aquele momento do que lhe foi dito, fechando um circuito de comunicação efetiva.
A experiência do médico também pode contar muito para gerar segurança. Mas não devemos confundir segurança com certeza absoluta, que pode levar o médico a cair na armadilha da superconfiança, onde acredita que a conduta decidida por ele culminará, invariavelmente, num resultado esperado. Experiência clínica tampouco é sinônimo de boa comunicação. O tempo de profissão, se não for usado a favor em busca do aperfeiçoamento, pode levar à arrogância, impaciência, respostas curtas e rispidez. Intimidar o paciente, que está numa posição de vulnerabilidade, não é uma estratégia aceitável.
E se fizermos todo o processo, incluindo raciocínio adequado, dividindo-o com o paciente, que concordou com a conduta e demonstrou entendimento. Nosso papel vai além disso, na mudança de comportamento do paciente ? Se ele falha em seguir o tratamento, é porque houve ruídos na comunicação ? Neste caso, acredito que entrem em jogo muitas outras variáveis. No entanto, devemos nos esforçar para que a ideia de motivação não entre no caminho da repreensão. Na maioria das vezes a conversa autoritária, a crítica e o xingamento não resultarão em motivação, mas sim terão o efeito contrário. Se o paciente tiver medo de voltar por ser recriminado, a chance de descontinuidade no seguimento é muito grande. E aí, portanto, aconteceu uma falha no processo que é nossa responsabilidade.
A consulta médica deve ser um local de acolhimento e não julgamento. É um ato de sutileza, no pensamento e nas ações.
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